domingo, 3 de novembro de 2013

Menina que roubava livros - Prólogo

Contexto: Minha amada avó sofreu uma parada cardiorrespiratória na noite de sexta-feira, recebi a noticia no sábado as 11h... Esta na UTI, respirando por aparelhos e em uma situação bem complicada... Resta-nos esperar e rezar para que o melhor aconteça, seja esse melhor qual for... (Vó Alba fez 86 anos dia 17 de agosto passado).
Não sei como fiquei, nem como estou... E para distrair, peguei esse livro...
Acaso? Talvez... Mas vou escrever aqui o que li, logo de cara...


A menina que roubava livros (prólogo)


PRÓLOGO

UMA CORDILHEI RA DE ESCOMBROS
ONDE NOSSA NARRADORA APRESENTA:
ela mesma
as cores
e a roubadora de livros
MORTE E CHOCOLATE
Primeiro,  as  cores.  Depois,  os  humanos.  Em  geral,  é  assim  que  vejo  as
coisas. Ou, pelo menos, é o que tento.

• EIS UM PEQUENO FATO •
Você vai morrer.
Com  absoluta  sinceridade,  tento  ser  otimista  a  respeito  de  todo  esse
assunto,  embora  a  maioria  das  pessoas  sinta-se  impedida  de  acreditar  em  mim,
sejam  quais  forem  meus  protestos.  Por  favor,  confie  em  mim.  Decididamente,  eu
sei  ser  animada,  sei  ser  amável.  Agradável.  Afável.  E  esses  são  apenas  os  As.  Só
não me peça para ser simpática. Simpatia não tem nada a ver comigo.

• REAÇÃO AO FATO SUPRACI TADO •
Isso preocupa você?
Insisto — não tenha medo.
Sou tudo, menos injusta.
— É claro, uma apresentação.
Um começo.
Onde estão meus bons modos?
Eu  poderia  me  apresentar  apropriadamente,  mas,  na  verdade,  isso  não  é
necessário.  Você  me  conhecerá  o  suficiente  e  bem  depressa,  dependendo  de  uma
gama diversificada de variáveis. Basta dizer que, em algum ponto do tempo, eu me
erguerei  sobre  você,  com  toda  a  cordialidade  possível.  Sua  alma  estará  em  meus
braços.  Haverá  uma  cor  pousada  em  meu  ombro.  E  levarei  você  embora
gentilmente.
Nesse  momento,  você  estará  deitado(a).  (Raras  vezes  encontro  pessoas  de
pé.)  Estará  solidificado(a)  em  seu  corpo.  Talvez  haja  uma  descoberta;  um  grito
pingará  pelo  ar.  O  único  som  que  ouvirei  depois  disso  será  minha  própria
respiração, além do som do cheiro de meus passos.
A  pergunta  é:  qual  será  a  cor  de  tudo  nesse  momento  em  que  eu  chegar
para buscar você? Que dirá o céu?
Pessoalmente,  gosto  do  céu  cor  de  chocolate.  Chocolate  escuro,  bem
escuro.  As  pessoas  dizem  que  ele  condiz  comigo.  Mas  procuro  gostar  de  todas  as
cores  que  vejo  o  espectro  inteiro.  Um  bilhão  de  sabores,  mais  ou  menos,  nenhum
deles  exatamente  igual,  e  um  céu  para  chupar  devagarinho.  Tira  a  contundência
da tensão. Ajuda-me a relaxar.

• UMA PEQUENA TEORIA •
As pessoas só observam as cores do dia no começo e no fim, mas, para mim, está
muito claro que o dia se funde através de uma multidão de matizes e entonações, a
cada momento que passa.
Uma só hora pode consistir em milhares de cores diferentes.
Amarelos céreos, azuis borrifados de nuvens. Escuridões enevoadas.
No meu ramo de atividade, faço questão de notá-los.
Já  que  aludi  a  ele,  o  único  dom  que  me  salva  é  a  distração.  Ela  preserva
minha  sanidade.  Ajuda-me  a  aguentar,  considerando-se  há  quanto  tempo  venho
executando  este  trabalho.  O  problema  é:  quem  poderia  me  substituir?  Quem
tomaria meu lugar, enquanto eu tiro uma folga em seus destinos-padrão de férias,
no estilo resort, seja ele tropical, seja da variedade estação de inverno? A resposta,
é  claro,  é  ninguém,  o  que  me  instigou  a  tomar  uma  decisão  consciente  e
deliberada  —  fazer  da  distração  minhas  férias.  Nem  preciso  dizer  que  tiro  férias  à
prestação. Em cores.
Mesmo  assim,  é  possível  que  você  pergunte:  por  que  é  mesmo  que  ela
precisa de férias? De que precisa se distrair?
O que me traz à minha colocação seguinte.
São os humanos que sobram.
Os sobreviventes.
É  para  eles  que  não  suporto  olhar,  embora  ainda  falhe  em  muitas
ocasiões.  Procuro  deliberadamente  as  cores  para  tirá-los  da  cabeça,  mas,  vez  por
outra,  sou  testemunha  dos  que  ficam  para  trás,  desintegrando-se  no  quebra-cabeça do reconhecimento, do desespero e da surpresa. Eles têm corações vazados.
Têm pulmões esgotados.
O que por sua vez, me traz ao assunto de que lhe estou falando esta noite,
ou  esta  manhã,  ou  seja  lá  quais  forem  a  hora  e  a  cor.  É  a  história  de  um  desses
sobreviventes perpétuos uma especialista em ser deixada para trás.
É só uma pequena história, na verdade, sobre, entre outras coisas:
*  Uma menina
*  Algumas palavras
*  Um acordeonista
*  Uns alemães fanáticos
*  Um lutador judeu
*  E uma porção de roubos
Vi três vezes a menina que roubava livros.

AO LADO DA LINHA FÉRREA
Primeiro aparece uma coisa branca. Do tipo ofuscante.
E  muito  provável  que  alguns  de  vocês  achem  que  o  branco  não  é
realmente  uma cor,  e  todo  esse  tipo batido de  absurdo.  Bem,  estou  aqui para  lhes
dizer  que  é.  O  branco  é  sem  dúvida  uma  cor  e,  pessoalmente,  acho  que  você  não
vai querer discutir comigo.

• UM ANÚNCI O TRANQUILIZADOR •
Por favor, mantenha a calma, apesar da ameaça anterior.
Sou só garganta...
Não sou violenta.
Não sou maldosa.
Sou um resultado.
Sim, era branco.
Era  como  se  o  globo  inteiro  estivesse  vestido  de  neve.  Como  se  houvesse
enfiado  aquilo, do  jeito  que  se  enfia  um  suéter.  Junto  à linha  de  trem,  as  pegadas
afundavam até as canelas. As árvores usavam cobertores de gelo.
Não  podiam  simplesmente  deixá-lo  ali  no  chão.  De  momento,  não  era  um
problema  tão  grande,  mas,  logo,  logo,  a  linha  seria  desobstruída  mais  adiante  e  o
trem precisaria seguir viagem.
Havia dois guardas.
Havia uma mãe com sua filha.
Um cadáver.
A mãe, a menina e o cadáver continuaram obstinados e calados.
—  Bem, oque mais você quer que eu faça?
Os  guardas  eram  um  alto  e  um  baixo.  O  alto  sempre  falava  primeiro,
embora  não  fosse  o  responsável.  Olhava  para  o  menor,  mais  rechonchudo.  O  do
rosto vermelho e suculento.
— Bem — foi a resposta — não podemos só deixá-los assim, não é?
O alto estava perdendo a paciência. — Porque não?
E  o  baixote  por  pouco  não  explodiu.  Ergueu  os  olhos  para  o  queixo  do
altão e gritou:
—  Spinnst  du?!  Você  está  variando?  —  A  aversão  em  suas  bochechas
adensava-se  a  cada  momento.  Sua  pele  foi-se  alargando.  —  Vamos  —  disse,
tropeçando na neve. — Levaremos todos os três de volta, se for preciso. Faremos a
notificação na próxima parada.
Quanto  a  mim,  eu  já  havia  cometido  o  mais  elementar  dos  erros.  Não
consigo  lhe  explicar  a  intensidade  de  minha  decepção  comigo  mesma.
Originalmente, eu tinha feito tudo certo:
Estudei  o  céu  ofuscante,  branco  feito  neve,  que  estava  na  janela  do  trem
em  movimento.  Praticamente  o  inalei,  mas,  mesmo  assim,  titubeei.  Cedi  —  fiquei
interessada. Na menina. Fui vencida pela curiosidade e me resignei a ficar o tempo
que meu horário permitisse, e observei.
Vinte e três minutos depois, quando o trem estava parado, desci com eles.
Havia uma alminha em meus braços.
Postei-me meio à direita.
A  dupla  dinâmica  de  guardas  do  trem  voltou  à  mãe,  à  menina  e  ao
corpinho  masculino.  Lembro-me  claramente  de  que  estava  respirando  alto  nesse
dia.  Fiquei  surpresa  com  o  fato  de  os  guardas  não  me  notarem  ao  passarem  por
mim. Agora o mundo estava afundando, sob o peso de toda aquela neve.
Uns  dez  metros  à  minha  esquerda,  talvez,  postava-se  a  menina  pálida,  de
estômago vazio, enregelada.
Sua boca tremia.
Seus braços frios estavam cruzados.
Havia lágrimas cristalizadas no rosto da roubadora de livros.


Retirado de: http://todosbonslivros.blogspot.com.br/2012/12/a-menina-que-roubava-livros-prologo.html